Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1762/2004-6
Relator: FÁTIMA GALANTE
Descritores: SEGURO DE ACIDENTES PESSOAIS
SEGURO DE VIDA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/13/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA.
Sumário: O seguro de acidentes pessoais tem por objecto a reparação dos danos sofridos pelo segurado na sua pessoa em virtude de acidente – acontecimento fortuito, súbito e anormal, devido a acção de uma causa exterior e estranha à vontade da pessoa segura e que nesta origine lesões corporais.
O seguro de vida é efectuado sobre a vida da pessoa segura, que permite garantir, como cobertura principal, o risco morte ou de sobrevivência ou ambos.
Para que a morte esteja coberta pelo seguro de acidentes importa a demonstração do nexo de causalidade entre o evento naturalístico e a lesão e entre esta lesão e a morte.
Ficando provado que foi em consequência do estado de grande ansiedade, tensão e stress que a vítima sofreu um enfarte agudo do miocárdio que lhe provocou a morte, ficou demonstrada a existência de uma cadeia de factos em que cada um dos elos está entre si sucessivamente interligado por um nexo de causal.
Comprovada a morte e o acidente por parte da beneficiária, cumpre à seguradora a prova do circunstancialismo impeditivo do direito da beneficiária do seguro.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA 6ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I - RELATÓRIO
Guilhermina, intentou, na 2ª Vara Cível de Lisboa, acção declarativa de condenação com processo ordinário, contra a Companhia de Seguros S.A., pedindo a condenação da demandada a pagar-lhe a quantia correspondente à indemnização contratual acrescida de juros de mora, desde 1.2.1998, até integral pagamento à taxa legal.
Alegou a A. que é viúva de Jacinto, falecido a 5 de Março de 1995 e que o mesmo se encontrava abrangido por um contrato de seguro do ramo de acidentes pessoais celebrado entre a ora demandada e a Câmara Municipal L., titulado pela apólice n° 23/525805, sendo o mesmo Presidente da Câmara e que na data da sua morte o seu marido se encontrava numa reunião de trabalho, tendo sido vítima de um acidente cardiovascular, em resultado do qual faleceu, por excesso de trabalho.
Mais alegou que se esperava que a reunião em causa decorresse sob um clima de tensão dado os problemas a tratar se arrastarem há já alguns anos e que o falecido se empenhara vivamente em resolver e que, a certo momento, após momentos nervosismo, o falecido sofreu uma indisposição súbita e mal estar e caiu desamparado, falecendo imediatamente, em consequência de um enfarte agudo do miocárdio. Alegou ainda que o mesmo sempre fora pessoa saudável até ali, não lhe sendo conhecida qualquer doença, designadamente do foro cardíaco e sem manifestação de qualquer cardiopatia isquémica e que a lesão que lhe provocou a morte derivou da actividade e esforço desenvolvidos durante as suas funções ao serviço da autarquia, devendo-se assim a causa alheia à sua vontade, abrangendo-se assim no conceito de acidente indemnizável referido na apólice de seguro em causa. Finalmente a demandante alegou ter participado a morte do marido à Ré em 9 de Março de 1995 e que a mesma se recusou a pagar-lhe a indemnização.

A Ré em contestação veio esclarecer que o seguro em causa está titulado pela apólice n° 93.000 e que por isso sempre a acção improcederia mas que, mesmo que assim se não entendesse, a verdade é que nunca a morte do marido da demandante se enquadraria no conceito de acidente para efeitos da apólice seguro em causa por a morte, ainda que devida a enfarte agudo do miocárdio, se não mostrar ter origem estranha à constituição da vítima, não advindo de uma causa exterior por se tratar de uma patologia que se desenvolveu ao longo de certo tempo no organismo da vítima, não correspondendo à verdade que quaisquer emoções tais como stress, ansiedade, nervosismo ou crispação fossem causa adequada da sua morte, concluindo no sentido da morte do mesmo se dever a doença e não a acidente.

  A Autora veio, a fls. 61 a 62 dos autos ampliar o pedido, de acordo com o esclarecimento quanto ao capital seguro, pedindo a condenação da Ré pagar-lhe a quantia de Esc. 15.000.000$00.

  Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, ficando a matéria de facto decidida pela forma constante do despacho de fls. 120 dos autos e foi proferida sentença que julgou a acção procedente por provada, condenando a Ré no pedido.

Inconformada, veio a Ré recorrer, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. Na douta sentença, o Tribunal "a quo" fez incorrecta valoração da prova.
2. O contrato de seguro titulado pela apólice n° 93.000 é do ramo de acidentes pessoais e não do ramo vida. Não se lhe aplica o disposto no art. 457º do Código Comercial.
3. No contrato, o sentido a dar aos vocábulos da expressão "o acontecimento fortuito, súbito e anormal devido a causa exterior e estranha à vontade da pessoa segura e que nesta origine lesões corporais" não se afasta do sentido normal.
4. O vocábulo "exterior" significa "o que está da parte de fora" ou "externo".
5. Só será de considerar acidente coberto pelo seguro, o evento que, além dos demais requisitos e pressupostos, tenha causa exterior.
6. Jacinto morreu na sequência de enfarte agudo do miocárdio.
7. A autoridade judiciária competente dispensou a autópsia uma vez que a morte teve origem num processo orgânico natural, não se indiciando a prática de qualquer crime.
8. Provou-se que Jacinto sofria de hipertensão, obesidade, colesterol elevado, e que fumava.
9. Decorre da matéria provada e do conhecimento, não só científico, como geral, acessível à generalidade das pessoas, que a hipertensão, obesidade, colesterol alto e o tabaco são as principais causas fundamentais dos enfartes agudos de miocárdio.
10. Provou-se na douta sentença que, à data da sua morte, Jacinto sofria de todos os factores físicos e fisiológicos internos favoráveis ao acometimento de enfarte.
11. Tais factores foram a causa directa e necessária da morte.
12. Competia à Autora alegar e provar que o evento causador da morte enquadrava-se no conceito de acidente.
13. Não tendo a Autora logrado tal prova, sempre a Ré, Recorrente, deveria ser absolvida do pedido, por inexistir obrigação de indemnizar.
14. Ao decidir como decidiu o Tribunal a quo violou, por errada aplicação, o disposto no art. 457º do Código Comercial, art. 342º nº. 1 do Código Civil e violou o disposto no art. 405º do Código Civil.

  Contra-alegou a A., tendo concluído:
  1. A causa da morte do infeliz Jacinto foi um Acidente cardiovascular - Enfarte Agudo do Miocárdio, o que não é uma doença, podendo ser, caso a vitima sobrevivesse ao evento, a causa geradora de uma insuficiência cardíaca, isso sim já cabendo no conceito de doença.
2. Tal acidente, súbito, violento pelas suas consequências, e imprevisto, dado que o infeliz Jacinto não era portador de qualquer doença designadamente do foro cardiaco, teve como causa geradora, o stress, a tensão e a ansiedade que se manifestaram na vitima, no local de uma reunião de trabalho, que se verificava em clima de grande nervosismo, dado que os problemas a discutir se arrastavam há já muito tempo, e a vitima, Presidente da respectiva Autarquia, queria vê-Ias resolvidos.
3. Mesmo que existissem antecedentes mórbidos ou manifestações prévias de cardiopatias esquémicas, o que não era o caso, a causa da morte (stress, tensão nervosa e ansiedade) integra-se no conceito de Acidente Pessoal descrito nas Condições Gerais da Apólice do ramo Acidentes Pessoais que abrangia o falecido Jacinto.
4. A causa da morte, colapso de um vaso sanguíneo - Enfarte Agudo do Miocárdio - é como a sua própria denominação o deixa entender, um Acidente cardiovascular súbito, violento e imprevisto, resultante do clima de stress, tensão nervosa e ansiedade, pelo que não poderá deixar de se entender a mesma como tendo origem externa à vitima.

Corridos os Vistos legais,
Cumpre apreciar e decidir.
São as conclusões das alegações que delimitam o objecto do recurso e o âmbito do conhecimento deste Tribunal (arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC), pelo que, a questão  fundamental a decidir consiste em saber se a morte de Jacinto se enquadra na definição de acidente formulada pelas condições gerais da apólice de seguro e se consequentemente estava ou não coberta pelos riscos seguros.

II – FACTOS PROVADOS
1. Jacinto e a Autora contraíram casamento católico, sem convenção antenupcial, em de Novembro de 1969, casamento dissolvido por óbito do cônjuge marido ocorrido em 5 de Março de 1995 ( Al. A) da Esp.).
2. Até ao dia 5 de Março de 1995 o referido Jacinto encontrava-se abrangido por um contrato de seguro do ramo acidentes pessoais celebrado entre a Ré e a Associação Nacional dos Municípios Portugueses, titulado pela apólice n° 93.000, até ao 15.000.000$00 (Al. B) Esp.).
3.Nos termos do contrato referido, o seguro abrangia, a título de coberturas principais, o risco de morte ou invalidez permanente, sendo que neste último caso, se a pessoa segura falecesse em consequência de acidente ocorrido no decurso de dois anos a contar do acidente, à indemnização por morte seria abatido o valor da indemnização por invalidez permanente que eventualmente lhe tivesse sido atribuída ou paga relativamente ao mesmo acidente (Al. C) Espec.).
4. Em 5.3.1955, Jacinto era Presidente da Câmara Municipal de L. (Al. D) Espec.).
5. Por carta de 9.3.1995 a C.M.L. comunicou à Ré a morte de Jacinto, referindo que o mesmo se encontrava numa reunião da mesma entidade e que sentiu mal, tendo caído desamparado e que transportado ao Hospital de Portimão ali veio a falecer (Al. E) Espec.).
6. Por carta datada de 16 de Março de 1995 a Ré comunicou à Câmara Municipal de L. que o aludido óbito se não enquadrava no conceito de acontecimento fortuito, súbito e exterior e estranho à vontade da pessoa segura e que nesta origine lesões corporais ( Al. F) Espec.).
7. Na data referida em 1, Jacinto encontrava-se em reunião de trabalho promovida pelo Bairro Boa Vontade, em Nexe (Resp. ao ques. 1°).
8. E tal reunião só pôde ser realizada naquele dia (domingo) devido às demasiadas solicitações e trabalhos agendados no exercício das suas funções (Resp. ques. 2º).
9.Não tendo por isso a mesma podido ser efectuada num dia útil normal (Resp. ques. 3º).
10.Esperava-se que a referida reunião decorresse num clima de alguma crispação pelos problemas a tratar (Resp. ques. 4º.).
11. Os problemas a tratar relacionavam-se, designadamente, com a construção de garagens pelos moradores e com a eventual cedência a título definitivo, pela Câmara Municipal, dos terrenos em que as habitações se encontravam implantadas, por tais terrenos terem sido apenas cedidos a nível da superfície (Resp. ques. 5º).
12. E que já se arrastavam há alguns anos (Resp. ques. 6º).
13. Os moradores exigiam solução para tais problemas (Resp. ques. 8º).
14. E que os mesmos já várias vezes haviam reivindicado (Resp. ques. 9º).
15. Prevendo-se a exaltação dos ânimos (Resp. ques. 10º).
16. Por isso a referida reunião decorria sob um estado de grande ansiedade (Resp. ques. 11º).
17. E em ambiente de tensão e de stress para todos os intervenientes (Resp. ques. 12º).
18. Sobretudo do aludido Jacinto, que se empenhara em resolver o conflito dos moradores com a Câmara Municipal de Lagoa (Resp. ques. 13º).
19. Em determinado momento e após momentos de nervosismo, Jacinto sentiu uma violenta indisposição (Resp. ques. 14°).
20. E mal estar ( Resp. ques. 15º).
21. Tendo, de súbito, caído desamparado ( Resp. ques. 16°).
22. Segundo a opinião dos médicos inquiridos a causa provável da morte foi um enfarte agudo do miocárdio ( Resp. ques. 17º).
23. Até ao momento da morte Jacinto nunca tinha queixas anteriores de natureza cardíaca, tendo índices de colesterol elevado, sendo um grande fumador, obeso e apresentando hipertensão arterial (Resp. ques. 19º).
24. Não lhe sendo conhecida qualquer doença e, designadamente, do foro cardíaco (Resp. ques. 20º).
25. Nem tendo tido qualquer manifestação prévia de cardiopatia isquémica (Resp. ques. 21°).
26. Tendo tido sempre uma vida profissional activa e bastante preenchida (Resp. ques. 22º).
27. Em regra, um enfarte agudo do miocárdio resulta de uma patologia que se desenvolve durante certo tempo, razoavelmente longo, no organismo da vítima, podendo eventualmente também ocorrer por pânico, eventualmente stress e ansiedade, conjugados, em princípio, com factores de risco como, por exemplo, o tabagismo, o colesterol elevado e a obesidade (Resp. ques. 24º).
28. As.demais cardiopatias isquémicas desenvolvem-se ao longo do tempo, lentamente, sendo lentas na sua evolução embora súbitas e " traiçoeiras" na forma como se manifestam (Resp. ques. 25º).

III – O DIREITO
1. Contrato de seguro do ramo acidentes pessoais
O contrato de seguro é um contrato formal - reduzido a escrito, num instrumento que constitui a apólice de seguro - pelo qual alguém se obriga a proporcionar a outrem, a segurança de pessoas ou bens, relativamente a determinados riscos, mediante o pagamento de uma contraprestação, chamada "prémio" [1].
Do lado do segurado impõe-se-lhe a obrigação de pagamento do respectivo prémio de seguro, segundo as mesmas condições acordadas e estipuladas na apólice (cfr., arts. 426º, §7º e 427º, ambos do Código Comercial). Do lado da seguradora, impõe-se-lhe a obrigação, face à prova da existência do sinistro e de que o reclamante cumpriu com as obrigações que para ele emanam do contrato e da lei, liquidar os compromissos a que a apólice o obrigue, ou seja, a obrigação de assegurar o pagamento dos montantes devidos com a ocorrência dos factos previstos na apólice.
Trata-se, portanto, de um contrato bilateral ou sinalagmático (dele resultam obrigações para ambas as partes, visto a prestação da seguradora consistir na suportação do risco, por contrapartida do recebimento do prémio), oneroso (dele resulta para ambas as partes uma atribuição patrimonial e um correspectivo sacrifício patrimonial), aleatório (a prestação da seguradora fica dependente de um evento futuro e incerto), e formal (a lei impõe a forma escrita).
De sublinhar que, de acordo com o art. 427º, Código Comercial, o tipo de contrato em análise se regula pelas disposições da respectiva apólice não proibidas por lei e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições deste Código, sendo certo que, a apólice é o documento que titula o contrato celebrado entre o tomador de seguro e a seguradora e é integrada pelas condições gerais, especiais e particulares acordadas.
Não obstante o contrato de seguro ser um contrato formal, que se constitui, como qualquer contrato, com o encontro de duas declarações de vontade, na verdade, a declaração negocial tanto pode ser expressa, como tácita: expressa quando feita por palavras, escrito ou qualquer meio directo de manifestação da vontade; tácita, quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam (art. 217º, nº 1, Código Civil).
  In casu sabemos que Jacinto estava abrangido por um contrato de seguro do ramo acidentes pessoais, que abrangia o risco de morte ou invalidez permanente, conforme art. 1º das condições gerais da apólice, sendo certo que os capitais seguros eram de 15.000.000$00 em caso de morte ou invalidez permanente, sendo 13.000$00/dia, em caso de incapacidade temporária e até 1.500.000$00 para despesas de tratamentos (vide fls. 59 dos autos).

O art. 1º, nº 4 das Condições Gerais da Apólice define por acidente “o acontecimento fortuito, súbito e anormal devido a causa estranha à vontade da Pessoa Segura e que nesta origine lesões corporais”.
Importa, desde logo, caracterizar o tipo de contrato de seguro celebrado, do ramo acidentes pessoais e estabelecer as diferenças do contrato de seguro do ramo vida.
A matéria que se prende com a classificação das modalidades e géneros de seguros está regulada nos arts. 123º a 128º do DL nº 94-B/98 de 17 de Abril, que teve em vista, além do mais, a «codificação» da legislação dispersa relativa ao acesso e exercício da actividade seguradora e resseguradora e a transposição para o ordenamento jurídico português das directivas de terceira geração, relativas à criação do «mercado único» no sector segurador - Directiva n.º 92/49/CEE, de 18 de Junho, para os seguros «Não Vida», e Directiva n.º 92/96/CEE, de 10 de Novembro, para o seguro «Vida», sendo certo que a modalidade de seguro de acidentes pessoais se insere no ramo “Não Vida”[2].
O seguro de acidentes pessoais que tem por objecto a reparação, seja em forma de indemnização ou renda, seja em forma de assistência médica, dos danos sofridos pelo segurado na sua pessoa em virtude de acidente, está hoje regulado nos Dec.-Leis nºs. 85/86, de 7 de Maio, e 94-B/98, de 17 de Abril, compreende, de acordo com o DL 94-B/98 de 17/4,  art. 123º, alínea b), as seguintes prestações:
a)- convencionadas - em que o montante é previamente definido, dependendo a sua concretização da verificação de certo evento;
b )- indemnizatórias - caso em que o montante da prestação será determinado pelos danos verificados, até ao limite máximo fixado.
c )- combinação de ambos.
Como refere José Vasques[3]o seguro de acidentes pessoais tem por objecto a reparação, seja na forma de indemnização ou renda, seja em forma de assistência médica, dos danos sofridos pelo segurado na sua pessoa em virtude de acidente – acontecimento fortuito, súbito e anormal, devido a acção de uma causa exterior e estranha à vontade da pessoa segura e que nesta origine lesões corporais”.
Já o seguro de vida é efectuado sobre a vida da pessoa segura, que permite garantir, como cobertura principal, o risco morte ou de sobrevivência ou ambos[4].
  Assim, em termos simplistas, pode dizer-se que no contrato de acidentes pessoais está coberto, o risco de morte, de invalidez ou de incapacidade temporária, desde que o evento não tenha sido causado por doença, ao contrário do que sucede no seguro de vida.
Daqui resulta também que não é essencial, ao contrário do que quer fazer crer a sentença recorrida, que a apólice referente a seguro do ramo acidentes pessoais indique a idade, profissão e o estado de saúde do segurado - ao contrário, aliás, do que sucede na apólice do ramo vida – por tais elementos serem irrelevantes para a formação do contrato em causa.
Seja como for, importa também ter presente que este contrato de seguro celebrado entre a Ré ora Apelante e Associação Nacional dos Municípios Portugueses estava obviamente vocacionado para abranger os acidentes pessoais de que fosse vítima o Presidente da Câmara Municipal de L., no exercício das suas funções.

2. Da causa da morte
Tendo em conta a matéria dada por provada, verifica-se que o enfarte do miocárdio, considerado, como causa provável da morte de Jacinto, ocorreu durante uma reunião de trabalho, no exercício das suas funções de Presidente da Câmara de L., reunião essa que decorria sob um estado de grande ansiedade e em ambiente de tensão e de stress para todos os intervenientes, sobretudo do aludido Jacinto, que se empenhara em resolver o conflito existente.
Em determinado momento e após momentos de nervosismo, Jacinto sentiu uma violenta indisposição e mal estar, tendo, de súbito, caído desamparado.
Mais se provou que Jacinto tinha índices de colesterol elevado, sendo um grande fumador, obeso e apresentando hipertensão arterial, tendo tido sempre uma vida profissional activa e bastante preenchida.
Até ao momento da morte, Jacinto não tinha queixas anteriores de natureza cardíaca, nem qualquer manifestação prévia de cardiopatia isquémica.
Importa, por isso, determinar se os factos dados por assentes permitem concluir que a morte de Jacinto foi consequência de acidente.
A Apelante defende que o acidente cardiovascular – enfarte agudo do miocárdio – é uma doença, pelo que a morte nunca estaria coberta pelo seguro de acidentes pessoais.
Segundo Armando Pereirinha da Faculdade de Medicina de Lisboa, “o Enfarte Agudo do Miocárdio, lesão irreversível do músculo cardíaco, corresponde a uma situação em que parte do miocárdio (músculo cardíaco) deixa de ser irrigado por haver obstrução da artéria coronária que leva o sangue a essa parte do coração. Essa parte do miocárdio vai sofrer um processo designado de necrose (que corresponde a morte dessas células), que irá depois ser transformada em cicatriz”.
A causa do enfarte agudo do miocárdio é, quase sempre, a existência de doença aterosclerótica ao nível das artérias coronárias, isto é, placas ateroscleróticas que, ao sofrerem rupturas, levam à produção de trombo (coágulo de sangue), que provoca a obstrução total da respectiva artéria, indo provocar o enfarte. O enfarte agudo do miocárdio resulta do desenvolvimento de doença aterosclerótica ao nível das artérias coronárias. À medida que as placas ateroscleróticas vão aumentando de diâmetro, vai aumentando o grau de obstrução das artérias coronárias.” [5].
  De acordo com artigo publicado na Revista Saúde & Lar “as causas do enfarte do miocárdio são fortemente influenciadas pelas diferentes normas sociais e culturais, sendo os principais factores de risco as dietas com elevado teor de gorduras saturadas e de sódio, o tabagismo, os estilos de vida sedentários e o consumo excessivo de álcool. Também a hipertensão arterial (HTA) não tratada, a hipercolesterolémia e a diabetes, associadas à deterioração das condições de vida e ao stress psicossocial, surgindo isolada ou cumulativamente, são importantes factores de risco”. [6]
Porém, nalguns casos o Enfarte do Miocárdio pode ser causado por uma violenta contracção da parede das artérias (espasmo), que bloqueia o fluxo sanguíneo a determinada parte do miocárdio. As causas deste espasmo são desconhecidas. Os espasmos podem ocorrer quer em artérias com aparência normal quer em artérias onde se desenvolve a aterosclerose. [7]

A morte de Jacinto pode inserir-se dentro do quadro de acidentes pessoais, estando coberto pelo contrato de seguro dos autos?
Pode concluir-se que a morte de Jacinto foi consequência de acidente tal como se acha definido na apólice?
Que a morte foi devida a enfarte agudo do miocárdio, não é posto em causa, mas, para além disso, é necessária a demonstração de que esse enfarte se deveu a causa exterior e estranha à vontade da pessoa segura.
Em 5 de Março de 1995, Jacinto foi vítima de enfarte do miocárdio, que se deveu a causa estranha à sua vontade.
Vejamos, então, o que provocou o referido enfarte.
Sabe-se que no referido dia 5 de Março, enquanto decorria uma reunião camarária, sob um estado de grande ansiedade e em ambiente de tensão e de stress para todos os intervenientes, sobretudo do aludido Jacinto, este, em determinado momento e após momentos de nervosismo, sofreu um enfarte agudo do miocárdio que lhe provocou a morte.
Para que a morte do marido da Apelada esteja coberta pelo seguro importa a demonstração do nexo de causalidade entre o evento naturalístico e a lesão (o enfarte) e entre esta lesão e a morte.
Para tal mostra-se necessária a existência de uma cadeia de factos em que cada um dos respectivos elos têm de estar entre si sucessivamente interligados por um nexo de causal.
No âmbito da responsabilidade contratual, ainda que caiba ao devedor, nos termos do art. 799º do CC a prova de que agiu sem culpa, a prova do nexo causal compete ao lesado, ou seja à A., tendo presente a regra do art. 342º nº 1 do CC.
Ora ficou provado que, tal reunião decorria num Domingo, devido às demasiadas solicitações e trabalhos agendados, no exercício das suas funções, esperando-se que a reunião decorresse num clima de alguma crispação, estando em causa a cedência de terrenos aos moradores em que as habitações se encontravam implantadas, questão que se arrastava há vários anos, prevendo-se a exaltação dos ânimos.
Por isso a referida reunião decorria sob um estado de grande ansiedade, ambiente de tensão e de stress, sobretudo do aludido Jacinto, que se empenhara em resolver o conflito dos moradores com a Câmara Municipal de L..
Em determinado momento e após momentos de nervosismo, Jacinto sentiu uma violenta indisposição, tendo, de súbito, caído desamparado, em resultado de um enfarte agudo do miocárdio que lhe provocou a morte.
Do que acima se refere resulta a prova de uma cadeia de factos, de causa exterior à vítima, em que cada um dos respectivos elos está entre si sucessivamente interligados por um nexo de causal: grande ansiedade, stress e nervosismo -> enfarte agudo do miocárdio -> morte.
Destarte conclui-se que ficou suficientemente provado que foi a verificação de um determinado evento (cadeia de acontecimentos) súbito e exterior à vítima que lhe ocasionou o enfarte de miocárdio e que foi causa da sua morte.
É verdade que ficou provado que Jacinto tinha índices de colesterol elevados, sendo um grande fumador, obeso e hipertenso.
Também se sabe, de acordo com estudos e investigações feitas, que a causa do enfarte agudo do miocárdio é, muitas vezes, a existência de doença aterosclerótica ao nível das artérias coronárias.
Porém, nem sempre é assim, como também o atestam estudos feitos e de que acima demos conta[8]: o enfarte do miocárdio pode ser causado por uma violenta contracção da parede das artérias (espasmo), que bloqueia o fluxo sanguíneo a determinada parte do miocárdio, sendo desconhecidas as causas desse espasmo, que pode ocorrer mesmo em artérias com aparência normal.
Aliás, como também está provado, até ao momento da morte, Jacinto, não tinha queixas anteriores de natureza cardíaca, não lhe sendo conhecida qualquer doença e, designadamente, do foro cardíaco, nem tendo tido qualquer manifestação prévia de cardiopatia isquémica.
Diz a Apelante que o enfarte se deveu ao facto da vítima ter índices de colesterol elevados, sendo um grande fumador, obeso e hipertenso, porém, não está provado que fosse essa a causa do referido enfarte e nada permite concluir que, pese embora, sejam factores de risco, tenham sido a causa do enfarte que vitimou Jacinto.
Ao invés, a A. demonstrou factos que são por si só suficientes para determinar a ocorrência do enfarte do miocárdio.
Assim ficou provado que a causa da morte de Jacinto foi um acidente cardiovascular - Enfarte Agudo do Miocárdio.
Tal acidente, foi súbito e tem que considerar-se imprevisto, na medida em que nada faz supor que a vítima sofresse de doença que lhe provocou o enfarte, sendo certo que ficou provado que não era portador de qualquer doença designadamente do foro cardíaco.
A causa geradora desse acidente foi, como resulta do acima exposto, o stress, o nervosismo e a grande ansiedade que se manifestaram na vitima, Presidente da respectiva Autarquia, durante uma reunião de trabalho que se realizava em ambiente de grande tensão.
Em consequência, conclui-se que não ocorrem os pressupostos de exclusão da obrigação de pagamento por parte da Recorrente do capital objecto do contrato de seguro de acidentes pessoais celebrado entre ela e a Câmara Municipal de Lagoa, improcedendo, assim, as conclusões das alegações da Ré/Apelante.

  IV - DECISÃO
Termos em que se acorda em julgar improcedente a Apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pela Apelante.
Lisboa, 13 de Maio de 2004.
Relatora
Fátima Galante
Adjuntos
Manuel Gonçalves
UrbanoDias
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[1] Vd. José Vasques, Contrato de Seguro, Coimbra Editora, 1999, pags. 87 a 140; Carlos Bettencourt de Faria, O conceito e a natureza jurídica do contrato de seguro, CJ, 1978, II, pags. 785 a 799.
[2] O contrato de seguro por acidentes pessoais é uma modalidade do ramo "acidentes" e não do ramo "vida", Ac. STJ de 9.2.1995 (relator Costa Marques), in www.dgsi.pt.
[3] José Vasques, ob. cit., pags. 60/61.
[4] José Vasques, ob. cit., pag. 75.
[5] Prof. Armando Pereirinha da FML, in www.vidasaudável.pt.
[6] 2004 Saúde & Lar, in www.saudelar.com.; Sobre esta temática, consulte-se ainda www.hc.ufpr.br/acad/clinica_medica/cardiologia.
[7] Enfarte do Miocárdio, in www.grupo tm.com.
[8] Enfarte do Miocárdio, já citado, in www.grupo tm.com.